Minha pena

Acordei com aquele sentimento quase febril, sentia que algo deveria ser purgado de mim, meus humores se resolviam em um frenesi que chegava a angustiar, turbilhões de ideias passavam pela minha cabeça, havia já muito tempo não escrevia nada. Embora redação sempre tenha sido uma das minhas matérias preferidas na escola e até tenha me garantido uma boa colocação no vestibular, as atribuições da vida adulta e de médico já não me permitiam tal deleite. No entanto, o impulso de escrever algo me veio logo pela manhã, talvez o estresse e as obrigações cotidianas me impelissem a uma sangria intelectual.

Antes de pôr no papel qualquer coisa que fosse, era necessário ter uma caneta, instrumento vital a qualquer pretendente a escritor. Olhei para a minha, pendurada no bolso do jaleco, e logo me veio um pensamento de desaprovação; não profanaria a mais medíocre das obras literárias com uma caneta simples, de serviço, que desaparece de nossas mãos como se tivesse a capacidade de atravessar um portal para outra dimensão.

Era preciso algo especial, tomei um banho quente e me vesti. Os mais diversos temas flutuavam no campo das ideias, nenhum, é verdade, durou tempo suficiente para que o esboço tomasse vulto e se tornasse algo mais concreto. A excitação, comparada a de um primeiro encontro, tomava conta de mim. Iria escrever algo novo, não seria uma receita ou prescrição médica, e sim o resultado de um processo criativo e trabalhoso, mas que daria muito prazer ao final, quando pudesse contemplar a obra completa.

A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando: por que diabos eu me incomodava tanto em ir comprar uma caneta? Digo apenas que estamos em 2019 e os computadores fazem parte de nossas vidas assim como qualquer peça de vestuário e, inclusive, já se misturam-no formato de coisas que carinhosamente batizamos de wearables. Mas não eu; ainda que novo, preferia a escrita à moda antiga, o ato de deixar um manuscrito rabiscado, palavras suprimidas, trocadas, ideias rabiscadas na tentativa fútil de ocultar o que um dia havia passado pela cabeça do autor, esse era o charme de escrever, mas que fora, de forma ultrajante, abandonada pelo poder de um backspace.

Após tal divagação, encontrei uma papelaria; não sabia ao certo quanto tempo havia caminhado; entrei na loja com um ar de gravidade, como de alguém que tem uma missão importante em mãos. A arte da escrita, presente dos Sumérios, aprimorada no Egito e perpetuada através dos tempos, era a mim também ofertada. Finalmente encontrei o que queria: uma caneta tinteiro, ponta fina. Não havia nada mais clássico do que aquilo. Sujaria minhas mãos como o mesmo prazer que um escultor suja suas mãos com gesso em prol de sua criação.

Aproveitei para comprar cargas sobressalentes, não queria correr o risco de ficar sem tinta durante minha tempestade criativa. Coloquei tudo em uma sacola e saí da loja com um sorriso no rosto, as palavras passando como sonhos por meus olhos ainda que totalmente abertos.

O caminho de volta pareceu-me demasiado longo, por que será que o tempo anda tão devagar para os que têm pressa? Abri a porta de meu apartamento de forma brusca, fechei-a, fui à cozinha e coloquei todo meu material em cima da mesa.

Finalmente estava tudo pronto, nada poderia me atrapalhar; era um sábado melancólico, e eu não esperava nenhuma visita; teria todo o tempo do mundo. Pronto para começar minha Capela Sistina, olhei incrédulo para o papel em branco e percebi, com olhar de pena, que embora tivesse uma que escrevesse, haviam-me fugido todas as ideias.

Sobre o autor: Dênnis Penna Carneiro, nascido no dia 22/04/1992, é natural de São José do Rio Preto, apesar de ter passado toda sua infância e adolescência em uma pequena cidade chamada Icém. Cursou medicina na Universidade de Marília, Marília-SP, e, atualmente, reside na mesma cidade em que se formou. Tem a escrita e a leitura como hobbies e ainda planeja lançar um romance.

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